9.4.06

arquivo.

perdido em arquivos. lá se via sua vida. divisórias mil lhe saltavam daquela armação metálica. lia cada etiqueta e percebia então como estava sua vida organizada. notou com estranheza que entre as pastas, inúmeras sub-divisórias compunham aquela parte de sua existência. a sua vida era organizada em ordem alfabética, o que dificultava sobremaneira achar o que mais lhe competia nesse exato momento de sua vida. amor lhe trazia inúmeras imagens, alguns relatos que mais pareciam memórias e muitos cheiros. beijo, o primeiro aos quinze, a pele, a primeira aos dezessete, a menina dos seus olhos, ainda. e assim foi desvendando a realidade objetiva de sua vida. questionou alguns relatórios, pois não era bem assim que lembrara. algumas descrições achou cruas demais. falta um tanto de poesia nisso tudo. mais metáforas, um eufemismo barato aqui, pitadas de hipérboles ali, será que aqui não há poetas? falava e ria-se quase o tempo todo. alguns momentos calava, tomava o papel nas mãos e num impulso de quase rasgar, guardava-o.

o dia foi se estendendo até o funcionário da repartição lhe dizer que lhe restava apenas quinze minutos. mas na placa está escrito que fecha ás dezenove horas. sim, com certeza senhos, fechamos às dezenove, porém se o senhor não sair quinze minutos antes, teremos de fechar quinze minutos mais tarde e isso não nos é permitido. estou terminando. tomou um susto. ao puxar uma das pastas, ela não veio nem se abriu. as luzes se apagavam uma a uma, como relógio, parecia que era perseguido pelo funcionário para que ele saísse dali no horário estabelecido. tentava abrir aquela pasta. nada. numa das tentativas, seu empenho coincidiu com uma fileira de luz que se apagava. suou frio. isso é absurdo, por que essa pasta não abre. ela é minha, nada que é meu pode ser a mim negado! mesmo que aqui não haja nada, é dever meu abrir. quem fez isso aqui? por que não consigo abrir. ele começou a dar pequenas pancadas que faziam algum barulho por causa do metal do arquivo. olhou para ver se o funcionário não vinha. nada. as luzes continuavam a se apagar sistematicamente. voltar a abrir outras pastas que já tinha aberto anteriormente, amor, vida, dor, e todas abriam com um folhear de páginas. voltou aquela maldita. relutante. ela não abria de forma alguma. num suspiro de cansaço pensou em desistir, mas daí veio-lhe maior força e começou a puxar e tentar arrancar e rasgar a pasta. usava as duas mãos, tal luta desenfreada, raiva no rosto suado, não se importava mais com quem aparecesse.

o funcionário da repartição veio caminhando por entre as colunas apagando as últimas duas fileiras de luz que ainda restavam acesas. a única iluminação no prédio era a da sala de arquivos. entrou na sala com a calma burocrática que lhe era peculiar. mas onde se meteu o senhor que mexia nos arquivos? A sala vazia, apenas aquela gaveta do arquivo aberta. o funcionário leu o nome, olhou para os lados, procurou o senhor escondido em algum canto. nada. a sala estava vazia. olhou dentro do arquivo, uma pasta aberta, um tanto amassada e com rasgos em seus cantos que lhe chamou a atenção. atenção mínima. um gato miou na rua. foi o suficiente para ele esquecer do senhor. fechou a pasta que permanecia aberta, passou a chave no arquivo, apagou a última luz e se perdeu na escuridão.

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