9.4.06

teodoro sampaio.


Andava pela cidade sempre que podia. Era um desses dias de poder. Fim de madrugada. Mais que noite, era frio. Misturava-me entre os tijolos da névoa que descia até a terra, pelos quarteirões da Teodoro Sampaio. Ia-me só. Junto a um dos muros, bem agasalhado, calça jeans, jaqueta de couro preta. Olhava por vezes para frente, mas a regra era o olhar inclinado, rumo ao chão. Os bares já estavam fechados ou a ponto de fecharem. As casas noturnas vomitavam agora um ou outro bêbado que demorava a sair. Numa rua onde nem a madrugada era capaz de faze-la adormecer, o começo da manhã chega como calmante, entorpecente necessário para sonhar.
Mas ainda faltava. Havia ainda alguns minutos de madrugada, talvez um quarto deles. Passos decididos, eu rumava sem interrupção. A não ser quando um maluco no volante insistia em cortar a rua, avançar sinal. Até os carros essa hora eram raros. Quase manhã de sábado.

Pouco ou nada passava pela minha cabeça. Via os letreiros de clubes de striper. Daqueles que só aparecem à noite, ficam o dia todo camuflados entre as lojas. Só podem ser achados de madrugada néon. Sim, eles ainda estavam acesos, embora me parecesse que os intervalos entre as piscadelas de luz eram cada vez mais demorados. Besteira. O fato era que pela primeira vez vira aquela rua assim, desnuda, dormente, sem camisola, nua. Feia e nua. Cada parede e via suas rugas, suas estrias, suas grandes cicatrizes. Via que aquela ferocidade masculina da Teodoro Sampaio que de dia tudo agüentava, de noite era rapariga, violada, presa, jogada aos trapos. Sentia que estava percorrendo o seu corpo, desde a cabeça, até ali, naquele entroncamento hermafrodita, de bagos, de grandes e pequenos lábios, o sexo da Teodoro, o Largo. Veio-me a angústia, o temor, a vontade de sair daquele corpo maldito. Senti-me moleque muito novo que levado ao puteiro pelo pai para aprender as regras da vida, sente-se violentado. Não entende. Não consegue, por mais que queira. Não pai, não foi bom, tive medo. Tenho medo. Ah, pai, onde você está agora?
Um carro rasgando a rua em minha direção me tirou um pouco da cilada mental que me colocara. Tive vontade de me colocar em sua frente. Não, não queria me matar. Queria entrar nele. Sair dali, ir para qualquer beco que cruza a Teodoro, queria qualquer cardeal, queria sumir dali. Mesmo assim meu passo continuava rápido, apressado. Nem me movi, o carro passou cambaleando. Bêbado. Bêbados.
Tanto que já passei por aqui. Não, nada parecia com aquilo que via agora. Todo esse tempo e não a conhecia. A rua até aquele instante estava invisível. Disfarçava-me das pessoas, ignorava as faces, os mendigos, os doentes, mas nunca percebi que ela me olhava. Tanto tempo e não a percebia. Agora a consciência me subia como gozo. Ri de mim mesmo. Até arrisquei passar a mão pelas paredes. Ruas estreitas. Como cabe tanta gente? Tanto carro? Tanta coisa.O dia despontava. Começo das primeiras luzes. Os primeiros panos brancos se estendiam no céu. As pessoas saiam das casas, sem notarem onde estavam. Os olhos cansados, os ônibus ainda preguiçosos. Eles não sabiam onde estavam. Largo da Batata, já havia movimentação, ambulantes, camelôs, lojas, sujeiras nas calçadas, não, eles não sabiam, as pichações, aquele senhor de poncho feito de cobertor, gorro, a mulher que levava a criança no colo, o moleque do jornal, não, eles não sabem. Já era manhã. Estranho ver toda essa rua de ressaca. Entrei num bar que abria àquela hora. Por favor, me vê uma! Ei, a Teodoro, é homem ou mulher? O dono do bar riu. Ri também. Eu sabia a resposta.

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