22.4.06

engraçado.


graça. o menino chegou fazendo graça. ofereceu um sorriso ao moço engomado que tomava um suco na padaria. um sorriso e uma graxa. vai seu moço? não, não obrigado. deixo sapato espelho, e se coloca debaixo de saia de menina moça, moço do céu, ai ninguém segura. e ainda conto história. história de que? vai a graxa? com história é mais cara? magina, a história vem de brinde, agregado como dizem ai. então conta só a história, sem graxa. mas seu moço ai fica sem graça. por que a graça da história é contá-la enquanto engraxo.
o menino, preparado, graxa nas mãos, graça no sorrisos, sentou o moço como rei e tomou-lhe o sapato esquerdo.
sabe moço, que conheço jeito de ser qualquer só pelo sapato? dou uma olhada, pisco o olho de um lado, não erro. lustrado, fosco, liso, furado. sei de longe. tem pé que a gente nem pede pra engraxar. é engraçado, mas é assim. e o meu? como eu sou? não carece de falar não. por que? têm coisas que só tem sentido é pra gente. coisa de dentro. mas pra que saber coisas só pra gente? pois não contei? contou, mas ainda assim não sei identificar personalidade por meio do sapato. aposto que saberá um jeito ai dentro da sua cabeça. me fala o seu! o meu é meu seu moço. a gente é diverso até no sapatear a vida dos outros.. e tenho tanta coisa na minha cabeça que se colocar alguma pra fora é capaz de bagunça tudo. cair. deixo aqui. solto só o sopro. com ele o senhor pode fazer a boca que quiser. o senhor é doutor? deve ser desses que trabalha em banco. isso mesmo garoto, a roupa diz tudo. não, não é a roupa não seu moço. é o pé que não pára de balançar. o senhor não pára não?
a conversa seguiu. sorrindo. o menino demorou mais tempo que sapatos normais. colocou caixote no ombro, flanela no bolso, trocado nas mãos. saiu. o moço se virou, voltou ao seu suco. demorou ainda alguns instantes. seus pés saíram da padaria sentindo-se meio engraçados. graxa.

12.4.06

tijolo.



de pó a terra, de terra e lama.
de lama barro, de barro chama.
- chama a construção que há de chegar!
- chama o sinhozinho que casa há de dar!

dachama quente, da lama água.
um namorico quer a dura mágoa.

o sentimento se faz tijolo.
cnstrói, corrói, destrói.
do vento, da chuva, da chama.
- deita e fica sinhozinho tolo!
constrói, corrói, destrói.
dá chama, barro e lama.

lama, em sol quente faz verão.
pouca chama, já faz terra, já faz chão, como todo destino há de ser só...

da lama a terra, da terra ao pó!

9.4.06

(...)

São Paulo, trem, noite. A trilha é pagode puro, salgado a suor de pobre, em versos com refrão que se repete de música em música: - Seis pilha palito (...) – Agenda de bolso (...) – Livro para colorir (...) – Isqueiro, três (...). De cinqüenta a um real. Mais que isso ninguém teria. A cada estação trocam-se os ambulantes, o discurso é o mesmo, os produtos às vezes não. Guardada em bolsa, a venda é disfarçada até o trem se por em movimento.

Osasco – Jurubatuba, 23h30. O caminho de volta começa desde a hora que se sai de casa. O emprego é desgastante, o sono vem logo. Metido em seus pensamentos, segue o viajante. Vazio.
Segura a bolsa, com a mão apertada, de quem mesmo cochilando não se distrai. Ah, quantas e quantas vezes não vira moleque correr com furto fresco. O descuido de um olhar poderia custar muitas horas em um Poupa-tempo. Às vezes percebia a mão até doer de tanto que apertava sua bolsa sem se dar conta. Caminho de volta é feito de muitas orações. De tempos em tempos, um som de centenas de abelhas voando antecedia a voz rouca e abafada, estação que chegava. Junto, os dizeres de aviso quanto ao espaço que ficava entre o trem e a plataforma.

Havia um senhor perto da porta, que segurava os metais do trem e portava pequena sacola em mãos. Jaqueta surrada, barba que começava a crescer branca, os olhos fixos e seguros de si. O homem que segura a bolsa o olha de quando em quando como a se proteger. Desconfia dele. O velho não tem cara de trabalhador. O que carrega na sacola pode ser os frutos de um pequeno assalto feito a pouco e suas roupas apenas para esconder o grosso calibre que carrega na barriga. Quanta besteira que passa pela minha cabeça! Apenas um senhor... Mas ele me olha às vezes! Minha roupa é simples, mas não feia, pode achar que tenho dinheiro. Acho que tenho trinta reais na carteira. Será que ainda estou com ela aqui? Apalpa suas nádegas. Ainda estou. Será que meu celular está aparecendo, mas se eu for mudar de lugar aparecerá mil vezes mais. Ainda faltam três estações.

O velho senhor, em passo firme senta-se ao lado do homem da bolsa. O coração do último sai pela boca e o suor frio quase rompe o rosto. Minha intuição não falha, em poucos segundos ele vai me abordar com a maior educação do mundo, talvez me pergunte às horas ou simplesmente me informe do assalto. Nunca as estações demoraram tanto a passarem. Mais que droga.

(...)

- Estação Granja Julieta. Por favor se atentem ao espaço entre o trem e a plataforma

Minha estação. Vou fingir que ainda não é a minha e sem ele se dar conta, escapo dessa.
Ao se levantar, quando as portas já se estavam abertas, o velho o segura forte no braço, com uma violência extrema e, quase com olhar raivoso, diz em tom baixo e rastejante:

- Não desça! Desça na próxima estação seu idiota!

O homem da bolsa exclamou no rosto uma expressão de horror, desvencilhou-se rápido da mão do velho e a fugir correu para fora do trem. Ainda teve tempo de tropeçar no espaço entre o trem e a plataforma. O alivio veio profundo, quase que fora assaltado, talvez seria até morto. Escapara do perigo.

A imagem a quem estava no trem foi clara embora rápida. Ao descer, o homem da bolsa encontrara uma estação vazia a não ser por um grupo de sete ou oito jovens, que não coravam por ter em punhos paus, revólveres, correntes e o que fosse mais utensílio a violência.

A imagem corrida aos passageiros do trem foi um homem, que empunhava em mão uma bolsa, correndo. Atrás dele sete ou oito rapazes armados de matéria e raiva. O trem saiu da estação e a última cena que se viu foi ele correr as escadas.

O velho orou. O desfecho ninguém soube. Não deu notícia no dia seguinte.

- Estação Socorro.

A última cena que se viu foi o velho ao subir as escadas. Filme com slides em cada janela.

jovem andaluz.


manhã, a manhã, quanta manha!
o sol preguiçoso, já vistoso ergue-se luz.

manhã, tarda a mim amanhã!
hoje sou apenas o jovem andaluz.

manhã, esta manhã, quanta manha!
o sol já disposto, encosto envolto em luz.

manhã, sarda de sol do amanhã.
hoje sou apenas o jovem andaluz!

manhã, funesta manhã, fuga manha!o sol,
claro dorso, deitando pouca luzmanhã,

tarda o fim e volta amanhã.
hoje sou apenas o jovem andaluz

teodoro sampaio.


Andava pela cidade sempre que podia. Era um desses dias de poder. Fim de madrugada. Mais que noite, era frio. Misturava-me entre os tijolos da névoa que descia até a terra, pelos quarteirões da Teodoro Sampaio. Ia-me só. Junto a um dos muros, bem agasalhado, calça jeans, jaqueta de couro preta. Olhava por vezes para frente, mas a regra era o olhar inclinado, rumo ao chão. Os bares já estavam fechados ou a ponto de fecharem. As casas noturnas vomitavam agora um ou outro bêbado que demorava a sair. Numa rua onde nem a madrugada era capaz de faze-la adormecer, o começo da manhã chega como calmante, entorpecente necessário para sonhar.
Mas ainda faltava. Havia ainda alguns minutos de madrugada, talvez um quarto deles. Passos decididos, eu rumava sem interrupção. A não ser quando um maluco no volante insistia em cortar a rua, avançar sinal. Até os carros essa hora eram raros. Quase manhã de sábado.

Pouco ou nada passava pela minha cabeça. Via os letreiros de clubes de striper. Daqueles que só aparecem à noite, ficam o dia todo camuflados entre as lojas. Só podem ser achados de madrugada néon. Sim, eles ainda estavam acesos, embora me parecesse que os intervalos entre as piscadelas de luz eram cada vez mais demorados. Besteira. O fato era que pela primeira vez vira aquela rua assim, desnuda, dormente, sem camisola, nua. Feia e nua. Cada parede e via suas rugas, suas estrias, suas grandes cicatrizes. Via que aquela ferocidade masculina da Teodoro Sampaio que de dia tudo agüentava, de noite era rapariga, violada, presa, jogada aos trapos. Sentia que estava percorrendo o seu corpo, desde a cabeça, até ali, naquele entroncamento hermafrodita, de bagos, de grandes e pequenos lábios, o sexo da Teodoro, o Largo. Veio-me a angústia, o temor, a vontade de sair daquele corpo maldito. Senti-me moleque muito novo que levado ao puteiro pelo pai para aprender as regras da vida, sente-se violentado. Não entende. Não consegue, por mais que queira. Não pai, não foi bom, tive medo. Tenho medo. Ah, pai, onde você está agora?
Um carro rasgando a rua em minha direção me tirou um pouco da cilada mental que me colocara. Tive vontade de me colocar em sua frente. Não, não queria me matar. Queria entrar nele. Sair dali, ir para qualquer beco que cruza a Teodoro, queria qualquer cardeal, queria sumir dali. Mesmo assim meu passo continuava rápido, apressado. Nem me movi, o carro passou cambaleando. Bêbado. Bêbados.
Tanto que já passei por aqui. Não, nada parecia com aquilo que via agora. Todo esse tempo e não a conhecia. A rua até aquele instante estava invisível. Disfarçava-me das pessoas, ignorava as faces, os mendigos, os doentes, mas nunca percebi que ela me olhava. Tanto tempo e não a percebia. Agora a consciência me subia como gozo. Ri de mim mesmo. Até arrisquei passar a mão pelas paredes. Ruas estreitas. Como cabe tanta gente? Tanto carro? Tanta coisa.O dia despontava. Começo das primeiras luzes. Os primeiros panos brancos se estendiam no céu. As pessoas saiam das casas, sem notarem onde estavam. Os olhos cansados, os ônibus ainda preguiçosos. Eles não sabiam onde estavam. Largo da Batata, já havia movimentação, ambulantes, camelôs, lojas, sujeiras nas calçadas, não, eles não sabiam, as pichações, aquele senhor de poncho feito de cobertor, gorro, a mulher que levava a criança no colo, o moleque do jornal, não, eles não sabem. Já era manhã. Estranho ver toda essa rua de ressaca. Entrei num bar que abria àquela hora. Por favor, me vê uma! Ei, a Teodoro, é homem ou mulher? O dono do bar riu. Ri também. Eu sabia a resposta.

o moço.



o moço,
que passa nas ruelasem
trotes de passo largo.
vê poço,
onde joga moedase
reza por seus fardos

o moço,
que passa pelas vilase
doce beijo joga a ela
desgosto,
da mulher-portão filas
amontoa-se lá no fim dela

o moço
de terno fino rosto viril
olha longe acena breve
alvoroço
ganha sorriso, ganha mil
esperanças a que se entregue

o moço
que cortês faz seu agrado
a donzela que muito quis
lava todo e amansa gado
faz-se escravo, faz-se feliz...

arquivo.

perdido em arquivos. lá se via sua vida. divisórias mil lhe saltavam daquela armação metálica. lia cada etiqueta e percebia então como estava sua vida organizada. notou com estranheza que entre as pastas, inúmeras sub-divisórias compunham aquela parte de sua existência. a sua vida era organizada em ordem alfabética, o que dificultava sobremaneira achar o que mais lhe competia nesse exato momento de sua vida. amor lhe trazia inúmeras imagens, alguns relatos que mais pareciam memórias e muitos cheiros. beijo, o primeiro aos quinze, a pele, a primeira aos dezessete, a menina dos seus olhos, ainda. e assim foi desvendando a realidade objetiva de sua vida. questionou alguns relatórios, pois não era bem assim que lembrara. algumas descrições achou cruas demais. falta um tanto de poesia nisso tudo. mais metáforas, um eufemismo barato aqui, pitadas de hipérboles ali, será que aqui não há poetas? falava e ria-se quase o tempo todo. alguns momentos calava, tomava o papel nas mãos e num impulso de quase rasgar, guardava-o.

o dia foi se estendendo até o funcionário da repartição lhe dizer que lhe restava apenas quinze minutos. mas na placa está escrito que fecha ás dezenove horas. sim, com certeza senhos, fechamos às dezenove, porém se o senhor não sair quinze minutos antes, teremos de fechar quinze minutos mais tarde e isso não nos é permitido. estou terminando. tomou um susto. ao puxar uma das pastas, ela não veio nem se abriu. as luzes se apagavam uma a uma, como relógio, parecia que era perseguido pelo funcionário para que ele saísse dali no horário estabelecido. tentava abrir aquela pasta. nada. numa das tentativas, seu empenho coincidiu com uma fileira de luz que se apagava. suou frio. isso é absurdo, por que essa pasta não abre. ela é minha, nada que é meu pode ser a mim negado! mesmo que aqui não haja nada, é dever meu abrir. quem fez isso aqui? por que não consigo abrir. ele começou a dar pequenas pancadas que faziam algum barulho por causa do metal do arquivo. olhou para ver se o funcionário não vinha. nada. as luzes continuavam a se apagar sistematicamente. voltar a abrir outras pastas que já tinha aberto anteriormente, amor, vida, dor, e todas abriam com um folhear de páginas. voltou aquela maldita. relutante. ela não abria de forma alguma. num suspiro de cansaço pensou em desistir, mas daí veio-lhe maior força e começou a puxar e tentar arrancar e rasgar a pasta. usava as duas mãos, tal luta desenfreada, raiva no rosto suado, não se importava mais com quem aparecesse.

o funcionário da repartição veio caminhando por entre as colunas apagando as últimas duas fileiras de luz que ainda restavam acesas. a única iluminação no prédio era a da sala de arquivos. entrou na sala com a calma burocrática que lhe era peculiar. mas onde se meteu o senhor que mexia nos arquivos? A sala vazia, apenas aquela gaveta do arquivo aberta. o funcionário leu o nome, olhou para os lados, procurou o senhor escondido em algum canto. nada. a sala estava vazia. olhou dentro do arquivo, uma pasta aberta, um tanto amassada e com rasgos em seus cantos que lhe chamou a atenção. atenção mínima. um gato miou na rua. foi o suficiente para ele esquecer do senhor. fechou a pasta que permanecia aberta, passou a chave no arquivo, apagou a última luz e se perdeu na escuridão.

segredo.


eu tenho um segredo.
-falais!
eu guardo-o comigo.
-não mais!

mas isto é tarefa de amigo.
-aliás...
mas isto é sem sentido.
-demais!

então conto ao meu outro.
-falhais!
outro amigo que confio.
-não mais

enconto eu conto


enconto eu conto.
encanto eu digo. em canto eu falo.
no canto, castigo, traz ti mastigado.
mas ti se dizes alado.
ao meu lado, enconto eu canto.
encanto eu falo.
deixa-me sair do canto,
me levar no seu canto,
no seu conto, enconto eu enquanto.

 
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